THE OLD-SCHOOL
Sou
um clássico incorrigível. Desde cedo, aprendi a admirar e respeitar a obra dos
grandes mestres da pintura tradicional. Como consequência dessa fixação, esses
valores ficaram sedimentados de forma indelével na minha existência. Por isso,
hoje, sou apenas um pintor voltado para a tradição dos velhos mestres, o que já
considero um privilégio, mas na constante teimosia de realizar apenas o que me
dá prazer de pintar. Lembro-me de uma frase com fundamento sólido: “pinte o que
você ama e ame o que você pinta”. Este princípio se fixou. Depois de uma vida
inteira de batalhas contra a mediocridade estética, posso falar com segurança
que só firmado neste axioma pude vencer as ondas da embromação do mundo da
arte. Por isso, jamais abandonei os valores clássicos.
No
início da minha trajetória como ilustrador, década de 70, ainda cursando a
Escola Nacional de Belas Artes e trabalhando em uma grande agência de
publicidade, conheci um mestre do desenho – Ivan Wasth Rodrigues –, que me apontou
o caminho da Old-school. Tornei-me
seu aluno, mas só me dei conta da grandiosidade do mestre depois de anos de
convívio, talvez por estar nessa época com a visão voltada para o mundo da
publicidade e seus brilhos passageiros. Era o momento do Push Pin Studios, dos gigantes do design gráfico, a exemplo de Milton Glaser, Seymour Chwast, John Alcorn e
dezenas de outros ilustradores famosos. Mas, nessa agência onde conheci Ivan, meu
objetivo estético começou a tomar forma: surgiu em mim o interesse pela
especialização em temas históricos, além de cultivar os gêneros tradicionais da
pintura. Pintor ou ilustrador, não me importava muito com esses rótulos, uma
vez que meu propósito na arte se cristalizava.
Ivan Wasth Rodrigues - "O último dos acadêmicos"
Naquele período de entusiasmos, imaginava-me
um gênio da propaganda e acreditei que havia criado uma nova vertente dentro do
surrealismo, que denominei de “realismo simbólico”. Pintei uma série de quadros
nesse estilo para uma exposição e redigi um texto superficial para o convite. Palavras
vazias sobre “a natureza da memória nos seus arcanos indecifráveis; a opressão
da religião constituída com a sua voracidade perversa; o poder nas suas múltiplas
formas de estupro da esfera personalíssima do ser e da riqueza da honra; o
esvaziamento da moral rumo ao niilismo, ao vazio que toma conta de nós a cada
dia e a ausência de sentido existencial que nos nadificou”... Teria sido apenas mais uma exposição com as falsas
alternativas já conhecidas. O pior é que, para o meu desapontamento, descobri
que o realismo simbólico já existia na Europa desde 1930 e não passava de um
surrealismo desgastado... Acontece que eu não queria ser um pintor surrealista,
pois jamais me identifiquei com a paranoia. Achava que o mercado de arte só
aceitaria um trabalho que pudesse chamar a atenção do público, chocando a
burguesia. Grande equívoco! O mercado sério e a crítica honesta cobram o
compromisso profissional na pintura acima de tudo.
Perdi o sono tentando encontrar um caminho.
Procurei, então, Ivan Rodrigues e expus as minhas dúvidas estéticas, ao que o
mestre retrucou: “Ronaldo, o que quer que você venha a fazer jamais poderá
agradar a todos. Durante a minha vida nunca me dividi, só fiz o que acreditava
e o que sempre pretendi foi seguir os passos do meu tio José Wasth Rodrigues. Não
se divida na arte e você chegará aonde realmente importa”. Depois de ouvir
Ivan, perguntei de forma ingênua: “Mestre, um esforço para desenvolver uma
pintura comercial, paralela ao seu trabalho mais sério, não seria coerente?”.
Foi aí que, pela primeira vez, pude vê-lo irritado quando me respondeu de
imediato: “Ronaldo, sou um especialista e isto não se discute!”... Bem, ao
analisar as palavras de Ivan joguei os convites no lixo, cancelei a exposição e
desisti dos voos surreais apelativos.
Aquarelas de Ivan Rodrigues
"A batalha de Campo Grande" de Ivan
"Bandeirantes" de Ivan
Aquarela de Ivan
Resolvi estudar um pouco mais antes de me
precipitar com exposições – agarrei-me ao clássico definitivamente. Tive
passagem temporária pelos ateliês de grandes mestres, como Oswaldo Teixeira,
estudando o modelo vivo; Edgard Cognat, a composição; Rui Campello, as técnicas
do óleo e João Medeiros, a paisagem. Então, pela primeira vez, vi a arte com
mais respeito. Mas foi com Ivan Rodrigues que me firmei no aprendizado mais
longo. Entretanto, na medida em que convivia com o mestre, constatava o imenso
grau de dificuldade para obter resultados satisfatórios com a aquarela e a base
de desenho que ela exige. Não é à toa que ele jamais deixou essa técnica para
se dedicar ao óleo. Sim, porque, se com as miniaturas em aquarela já é árduo
cultivar o gênero histórico, quanto mais abordar tamanho desafio com óleos de
dimensões maiores... Com Ivan, então, iniciei-me no desenho acadêmico e na
aquarela, através da sua ótica extremamente crítica. Como se fosse hoje, tenho a
lembrança do estúdio do mestre, com o seu cheiro característico, os milhões de
esboços e livros espalhados que me traziam o sabor da História. Então, daqueles
dias em diante, nunca perdi o interesse pela pintura de temas de época como
meio de expressão artística.
Nos anos seguintes, tentei pôr em prática
meu objetivo. Conheci outro grande mestre na Editora EBAL, Monteiro Filho, o
maior gênio do guache que já vira e que me orientou pacientemente nessa técnica.
Depois, tornei-me amigo de mais um mestre excepcional, de formação clássica,
Oscar Palacios, de quem recebi instruções por algum tempo na ilustração, mas
que me incentivava a deixar a propaganda e caminhar na direção da pintura de
forma profissional. Embora fosse um desenhista clássico acima da média, um
excepcional realista, enveredara pelos atalhos do surrealismo, o que me fez
desistir dos seus ensinamentos para evitar a perda do foco clássico.
Na busca inquietante pelo que almejava, afastei-me
da publicidade e fui parar nas editoras, trabalhando um bom tempo como designer e ilustrador, onde obtive maior
sintonia com meu estilo. Comecei desenhando histórias em quadrinhos; capas de
livros de autores célebres e ilustrando clássicos da literatura a nanquim,
guache, aquarela, pastel, óleo, etc. Esse período foi fundamental na minha
caminhada, pois me forçou ao exercício constante do desenho que aprendera com
Ivan e outros mestres. Tentando fixar-me no caminho que escolhera, parei de
atender aos diretores de arte que me pediam para imitar estilos de ilustradores
famosos. Isto porque meu objetivo sempre foi a variedade de técnicas com
unidade de estilo e não me tornar um imitador dos outros, uma colcha de
retalhos de estilos diversificados dos anuários de arte da moda. Só desenhava
através da minha visão. Bom ou ruim, mas apenas como sentia! Então, tempos
depois, avaliando os resultados, abandonei a publicidade para me dedicar à
pintura e, mais tarde, também à literatura.
Páginas da Bíblia de minha autoria - coleção "Heróis da fé"
Páginas da Bíblia de minha autoria - coleção "Heróis da fé"
Além
dos gêneros convencionais da arte pictórica como a paisagem, a natureza-morta,
o retrato, a figura humana, minha opção foi pela especialização em temas de
época, pois, ao contrário do rumo de algumas tendências estéticas, sustento o
fator narrativo como o cimento do meu trabalho. Este fator nunca deixou de ser
um corolário, já que em mais de quinhentos anos de arte o elemento narrativo
provou sua solidez. Assim, não posso errar baseando-me nos princípios da Old-school.
Separemos o fator narrativo. O que faço em
termos de pintura de época não é mera ilustração para um texto, são imagens independentes,
que integram o universo das artes plásticas. A cada instante pode ser feita uma
análise sobre a caracterização e os insights
da natureza humana. Palavras à parte, pois minha pintura, embora com o
cimento narrativo, revela o que não pode ser traduzido em palavras: o encontro
com a essência da pintura. Falo aqui, tão somente, sobre prazer estético.
O problema em
justificar o figurativo realista é pela sua natureza vulnerável aos ataques, já
que é algo absolutamente transparente ao público. Qualquer “erro” de execução,
por menor que seja, será sempre alvo de críticas. Entretanto, tudo que envolve
a figura humana, representa o desafio maior na arte, o ponto alto na pintura de
cavalete, justamente pela dificuldade técnica, que torna o progresso tão
demorado ao requerer, num longo caminho, humildade e paciência. Todo
estudante de pintura precisa adquirir os fundamentos técnicos necessários para
se intitular artista. Os grandes mestres tinham perfeita consciência de que o
segredo do sucesso não depende apenas de inspiração, mas de muita disciplina
aplicada na busca do domínio técnico. Hoje em dia, existe uma convenção
equívoca de que seguir os passos dos velhos mestres representa um bloqueio à
expressão própria... Falsa proposição! Só a intimidade com a técnica é que pode
realmente expressar de forma plena a visão única e interior do artista sério.
Sou mais um pintor de estúdio do que au plein air, porque meus quadros têm
uma complexidade que precisa ser resolvida através de estudos e esboços
preliminares. São pinturas laboriosas e a luz natural muda com muita rapidez, o
que me obriga a dividir o trabalho em etapas: inside e outside estúdio.
Mas existe um benefício nisso, pelo menos dentro do que faço, pois ao trabalhar
no estúdio tenho mais possibilidade de usar a imaginação, de gerar impressões
pessoais e explorar melhor a memória. Posso idealizar minhas composições sem a
submissão ao improviso.
Aceitei o desafio de não atender aos acenos
da estrada larga, aos barulhos da moda. Por fim, libertei-me do conceito
modernista de que tudo o que se faz sobre uma tela é válido. Arte jamais pode
ser qualquer coisa e é por isso que me oponho frontalmente ao sofisma de que
“não existe essa coisa chamada de arte, existem apenas artistas”... O domínio
técnico da pintura é um fato e jamais poderá ser destruído pela falsa dialética
dos que trilham o caminho fácil ou pretendem a anulação das etapas a serem
percorridas no aprendizado sério.
A perversidade dos cultores da arte sem técnica
reside em encher a cabeça do neófito com o conceito nocivo de que tudo o que se
pinta é bom e aceitável. Isso faz com que ele estacione e se torne preguiçoso,
admitindo como arte qualquer coisa que aconteça sobre uma tela, geralmente
acompanhada de discursos de estetas de mente atrofiada. O objetivo venenoso da
pintura da moda é a “necessidade de autoexpressão” e não a verdadeira
finalidade, que é comunicar algo mais universal ao expectador. Algo sobre a
vida e não sobre os confusos postulados estéticos da nossa época, que não
guardam nenhum interesse por parte do público. Como disse Da Vinci: “O supremo
infortúnio é quando a teoria suplanta a técnica” e isso nós encontramos nas
receitas insossas da arte sobre a arte.
Quando
abordo a questão da pintura de temas de época, minha preocupação, além dos
requisitos básicos da arte tradicional e através da pesquisa acurada, é recriar
um momento da História comprometido com a linguagem plástica. Então, vislumbro um
espaço indeterminado de tempo, uma época qualquer e observo o sentimento humano
através da minha janela particular, aberta para o cotidiano de tempos
pretéritos.
Meu
objeto primacial é a linguagem da pintura. Contemplativa. Porém, como não
poderia deixar de ser, a reflexão permanece entranhada como um fator
inalienável à minha produção pictórica. Assim, preocupo-me, concomitante à pesquisa histórica, em
captar a energia e o espírito de um momento que visualizo de um tempo ido, mas
que permanece vivo para mim, simplesmente porque é o que ainda me diz algo no
universo da pintura.
O discurso desbotado de que a arte tem
que retratar o seu tempo é muito relativo. Quem tem obrigação de retratar o seu
tempo é o jornalista e não o pintor... Arte é mais do que algo que dependa do
tempo presente. Através de uma execução técnica pessoal, tenho o pleno direito
de me fixar em elementos do passado por achar pobre o que vejo no presente. Direito
de autor. Talvez pela ausência de sentido no mundo que vejo hoje, eu encontre o
sonho na reconstrução do passado.
Não me traria satisfação usar a pintura para espernear com mil
protestos, expressar a revolta por um mundo deteriorado, ou me debater para
denunciar uma situação caótica e irreversível desse próprio mundo. Para “dizer”
as coisas, protestar, questionar, existe a palavra. Faço isto com o texto. O
que pesa na minha filosofia de arte é a linguagem da própria pintura, é a luz determinando
as cores com suas infinitas variações. Assim como a música, na sua qualidade
pura, não tem que dizer nada, mas expressar apenas um sentimento subjetivo pela
associação dos sons. O mesmo ocorre num quadro com a associação de formas e
cores.
O vasto acúmulo de detalhes que compõem o universo do gênero histórico,
com a honestidade da pesquisa própria, é o que confere autenticidade a esse
tipo de arte. Invariavelmente, é um processo que envolve contatos com
especialistas, museus, bibliotecas e livrarias temáticas. Para alguns críticos
isso poderia caracterizar ilustração, mas é o que me preocupa menos.
Entretanto, dependendo do meu conceito inicial, quando me interessa, também sei
ficar distante dos elementos que podem parecer ilustração. Abordo os intrincados
problemas da luz, da composição pura, da caracterização, buscando resultados através
da visão penetrante e do sentimento profundo.
No mundo de hoje, tudo pode ser representado pela arte tradicional: o
amor, a guerra, o trabalho, tensões sociais, a solidão, a paz, o desespero e o
sagrado. Embora um quadro não valha pelo que represente, mas pela emoção e
interpretação do seu autor, os temas muitas vezes estão presentes na arte oriunda
da tradição. Essa arte é muito forte, pois se perpetua quando existe a
sublimação do humano, do ofício e do significado técnico.
Não é preciso desconstruir a tradição de séculos de pintura para se
expressar com grandiosidade, como o ingênuo que se acha capaz de demolir o
edifício da tradição clássica. Até já virou refrão o dito superficial de que a
forma tem que ser diluída, pois, para reproduzir a natureza, já foi inventada a
fotografia... Só que os mestres do passado, como os do realismo contemporâneo,
nunca pretenderam reproduzir simplesmente a natureza, mas interpretá-la e isso
não está ao alcance de qualquer tipo de máquina. O olho se diferencia bastante
da lente de uma câmera, ele é seletivo e perfeito. Não é à toa que Cézanne
declarou: “Monet é apenas um olho –, mas Deus meu, que olho!”.
O realismo foi interpretado erroneamente ao longo do século vinte como
uma arte imitativa. Entretanto, os grandes realistas conseguem atingir o maior
poder de força criativa entre todas as outras escolas de pintura. Exatamente
por isso, é o estilo mais desprezado por aqueles que não têm a coragem
necessária para se aproximar de tal realização... Acusam o realismo de ser
fotográfico, só que a visão do pintor realista é o oposto do que faz a câmera. A
foto achata, distorce a imagem, reduzindo as suas relações de tom, cor e matiz,
ao estabelecer um resultado mecânico. O pintor experiente identifica nuances,
valores e relações tonais da natureza, com um olho treinado para isso. O
verdadeiro tema do pintor realista é a sua própria fluência pictórica, por
isso, ele consegue projetar suas nuances de visão numa imagem pintada. Perceber
uma obra clássica de valor significa dar um mergulho no mundo pictórico dos
grandes realistas que dominam o poder da ficção.
Na verdade, o que importa é como
se pinta e não o que se pinta. Para percebermos a grandeza de uma obra de arte,
não precisamos de discursos com palavras fortes que dão impressão de conteúdo.
Não precisamos de discursos surreais, nem de personagens gritando tal qual o universo
de Munch, ou formas apelativas de cabeças saindo do mesmo corpo como
demonstração da dualidade dos gênios... Nada disso, mesmo porque os “ismos” esgotaram
as novidades na pintura de cavalete e pretendo manter distância de qualquer compromisso
com a abertura de novos caminhos estéticos.
Para sentir a profundidade na arte, não precisamos de imitadores de
Francis Bacon, de Redon, de Chagal ou Blake, nem de trucagens oníricas tão
comuns aos filhotes de Dalí. Então, resolvi pintar da forma que aprendi, de
maneira simples, mesmo sabendo que não estou no caminho das novidades. É nas sutis
variações técnicas nascidas da tradição que vamos encontrar uma chance de
realizar algo com algum tempero de originalidade, pois só assim a alma passa a
estar no controle da execução. Tudo se resume na interpretação pessoal: ideias quase
todos têm, mas é a execução com conhecimento que determina a qualidade da arte.
Por isso, rejeito a “profundidade” dos estetas modernos.
Não se pode preterir a formação ancorada aos valores técnicos e
estéticos da Old-school, onde a
natureza é a maior mestra na formação da sua prole de seguidores. Quanto à
pintura histórica, trata-se do gênero considerado como dos mais difíceis, visto
que exige formação específica do artista. Os temas de época levam o pintor a
uma dedicação monástica através das etapas de documentação historiográfica,
pois requerem uma fidelização inevitável à iconografia, sem a qual a autoridade
histórica tende a se esvaziar. Em nossa época, testemunhamos o talento de
grandes pintores de temas históricos: Tom Lovell; Stanley Meltzoff; Ben Stahl; Frank
Reilly; Robert Thom; Dean Cornwell; John Stobart; Morton Kunstler; Don troiani
e centenas de grandes mestres comprometidos com um gênero pictórico sustentado
por séculos de tradição na grande arte. Incontestável.
Talvez por perceber com clareza os atalhos
do charlatanismo intelectual, minha visão estética tenha se voltado para os
clássicos desde cedo. Aprendi a ver que toda a crítica questionável preconiza a
rejeição da forma em favor da aparência de conteúdo, logo essa mesma crítica vai
rejeitar também a excelência técnica e, como consequência, promover a
ritualização do sem sentido, da banalidade. Por essa razão, a excelência da
arte não é o discurso vazio, é a excelência artística plena dos seus requisitos
tradicionais. Desta feita, não quero ser confundido com artistas que usam
argumentos anêmicos para dar sustentação a qualquer coisa que resolvem chamar
de arte. O que marca meu trabalho é o compromisso com uma pintura séria no que
se refere aos seus cânones tradicionais. Até que eu poderia usar o desenho para
criar formas oníricas que pudessem agradar a um público menos atento, mas não
adianta, pois ninguém pode expressar o que não tem. Portanto, arte não é só uma
questão de mercado. Nunca será. Arte é a medida direta da visão espiritual do
homem e isso envolve mais do que o dinheiro. Não é à toa que George Sand disse
que ninguém pode fazer de um homem o que ele nunca pretendeu ser.
Um pintor jamais poderá transmitir a sua
mensagem se for impotente para expressá-la com a mesma verdade técnica que nos
legaram os mestres do passado. O sentido técnico e estético foi o fundamento
das obras maravilhosas da antiguidade. Aqueles mestres somaram à faculdade de
criar uma larga experiência e profundo virtuosismo. A expressão do gênio se
tornou possível pela solidez da execução, logo, o pintor que se prende a
qualquer outro trabalho que não seja o simples manejo do pincel e renuncia aos
conhecimentos técnicos da própria pintura, se desenvolve sobre uma base falsa
de areia movediça. O pintor honesto percebe que a técnica contém recursos
infinitos, muito mais ricos que os sistemas e teorias abstratas que os gênios-plásticos
fundamentam as suas conquistas...
Alguns estetas sustentam a tese de que
devemos repudiar a obra dos artistas que cabalmente se alicerçam no tratamento
do tema e na técnica. Ensinam que precisamos, a todo custo, descobrir o que o
pintor pretende dizer com o seu trabalho. Entretanto, volto a insistir que, se
o artista pretende dizer alguma coisa, que o faça em prosa ou verso. Tentar
“dizer” significa que ele talvez tenha falhado, pois uma obra de arte não tem
necessariamente que dizer nada. Uma pintura é feita de imagens que, quando
associadas, geram um sentimento completo. Ela pode ser gritante ou tranquila,
suave ou agressiva, calma ou excitante, clara ou escura. O expectador não deve
ir atrás do que significa o quadro ou até do que o artista queira dizer. Ao
contrário, o expectador deve investigar como o pintor criou a obra e isso não
significa somente técnica. O “como” envolve as escolhas que o artista fez para
estabelecer os seus meios, unificar as imagens e chegar ao seu estilo. Entretanto,
se o pintor precisar dizer algo espiritual, social ou político, que o faça sem
perder a visão principal da sua interpretação.
A pintura se esvaziou na busca paranoica pelo
individualismo, pois, quase sempre, a originalidade é a primeira manifestação
de uma futura vulgaridade. Ticiano
era completamente diferente de Rafael e Rubens tinha um caráter oposto ao de
Velázquez. Nenhum desses artistas estava deliberadamente fazendo uma escolha
com o objetivo de expressar sua personalidade. Isso acontecia incidentalmente,
tal como nos expressamos nas nossas atitudes, realizações e até na nossa
própria caligrafia. O principal para eles não era o tema que pintavam e, sim,
como o pintavam. A preocupação maior dos mestres do passado não era com o
individualismo ou com a expressão. Comprometiam-se com o profissionalismo, apuro
técnico e com a excelência artística. Foram mestres da pintura e, assim, se
expressaram grandiosamente. Não criaram obras-primas pensando em produzir novidades
e o estilo deles foi construído de forma natural.
Sabemos que não há nenhum substituto eficaz da verdade, nem nada tão
duradouro como ela. Por esse motivo, estou absolutamente seguro de que o
realismo, enquanto significar “qualidade de existência” sobreviverá a todas as
outras formas de pintura. Não podemos convencer ao expectador de que, ao que a
ele parece uma deformação da verdade, seja o certo e o apropriado. Se,
entretanto, dissermos a esse expectador a verdade tal como é conhecida por ele,
será mais fácil encontrá-lo na metade do caminho.
Os artistas do passado eram grandiosos porque compreendiam profundamente
a natureza e as suas complexas manifestações. Então, a arte baseada na realidade
viverá como esta vive, apesar de todos os argumentos contrários. Entretanto,
sabe-se que, em todas as épocas, o talento foi ameaçado pelos medíocres... Não
sendo à toa que o pintor Pietro Annigoni declarou: “Estou convicto de
que a obra da vanguarda de hoje é o fruto envenenado de uma degradação
espiritual com a consequência da trágica perda do amor pela vida”. Essa degradação é simplesmente o
resultado da empulhação por conta de uma mídia à parte que tenta, ainda a todo
custo, substituir os valores da pintura tradicional para cegar o público. Ora,
tudo já foi feito na pintura de cavalete e a possibilidade hoje do artista ser
original vai depender do seu domínio técnico, pois o talento só aparece através
do controle dos meios.
Quando
dizem que o pintor realista apenas se repete, o que diríamos dos
abstracionistas que insistem hoje em plagiar obras como as de Kandinsky, por
exemplo, feitas no início do século vinte, mas com todo vigor e originalidade?
Tudo se repete menos a natureza, onde encontramos a fonte das grandes obras de
arte. Quero ser capaz de contar a história da humanidade através da sua
gigantesca vulnerabilidade e pintar a luta que o homem trava, desde os seus
primórdios, para construir algo mais permanente do ele próprio.
Quando o expectador contempla um quadro realista e afirma: “É lindo,
parece verdadeiro!”, não tem a menor ideia do acúmulo de conhecimento, da
habilidade necessária para que o trabalho pareça verdadeiro. Logo, a manifestação
artística com domínio só é possível quando se aperfeiçoam os meios de
expressão. O importante é ver as coisas em suas reais relações de planos, tons,
cores, proporção, perspectiva e luz. Não importa como manejemos esses
elementos, desde que os resultados sejam corretos. A diversidade de técnicas
procede dos modos individuais de se ver e executar, mas o problema é o mesmo para
todos.
A técnica é produto do autodesenvolvimento: é a ciência dos meios, base
de toda grande obra. Aliás, o talento é o conhecimento do ofício. Arte sem
técnica é a amputação do Belo, obra de falsos moedeiros e anões estéticos. Sobre
isso, Renoir nos deixou a lição: “Não há nada fora dos clássicos. Para agradar
a um estudante, mesmo ao mais opulento, um músico não pode acrescentar outra nota
às sete existentes na escala. Deve sempre voltar à primeira. Pois a mesma coisa
acontece na pintura”.
Quando fiz minha escolha profissional como pintor, visando o realismo, não
busquei os sedutores e surreais ventos da moda, uma vez que seria muito mais fácil
vender para os esnobes, embora por pouco tempo. Tampouco, intimidei-me com
ameaças do tipo: “os críticos não gostam dos clássicos incorrigíveis, dos
narrativos do desenho que ‘contam histórias’ e se parecem com ilustradores”...
Não me intimido, pois os críticos que têm estatura profissional não dizem
bobagens. São mestres na análise pictórica e sabem da sua responsabilidade
social.
Só os voluntariosos lutam pelo que acreditam, enquanto os que
praticam a fuga noturna acusam os artistas que realmente sabem desenhar de
ilustradores, narrativos, desferindo sobre eles ataques insidiosos, porque se
sentem ameaçados por algo descoberto há centenas de anos: o desenho clássico. A
Capela Sistina, então, deveria ser classificada como arte comercial, uma vez que
foi realizada por designação de um propósito específico e, nesse caso, seria
ilustração, encomenda. Mas, quanto a mim, já que Michelangelo fez ilustração, é
uma grande oportunidade de ter um mestre acima de qualquer suspeita, portanto,
uma ótima companhia...
Famoso internacionalmente como pintor e
ilustrador, Robert Fawcett rejeitava qualquer linha divisória entre arte
comercial e fine art: “Em New York,
arte na Quinta Avenida é fine, já na
Madison ou na Avenida Lexington é comercial...
Uma vez que essa distinção foi arquivada pelos esnobes como regra de ouro, acho
que não devo perder mais o meu tempo com considerações tolas. O que faço é fine art”.
Fawcett acreditava que a qualidade de uma
pintura não poderia ser determinada pelo fato de estar pendurada na parede de
um museu ou impressa numa revista. Um ilustrador pode criar fine art, assim como um pintor de
galeria pode produzir uma arte medíocre. Ilustradores, quando artistas de fato,
são livres para buscar a qualidade mais elevada nas suas pinturas: “A causa da
ilustração é mais bem servida pelo artista que alcança a dignidade ao ver a si
mesmo como membro de uma profissão que data dos tempos de Albrecth Dürer. O
artista deve saber que, para alcançar a estatura de um fine illustrator, tem que ser uma pessoa de grande cultura e
inteiramente devotado à sua forma de arte...”.
Fawcett dava de ombros aos discursos
abstratos e teorias confusas dos pintores de galeria que desprezavam a
ilustração, acusando-a como se fosse algo inferior. Replicava que essas
reivindicações pelo bom-gosto esmagavam a verdadeira criatividade: “O ato
criativo na arte envolve um tipo de coragem que o ‘bom-gosto’ pode facilmente
modificar. No desenho, um excesso do que nós achamos ser bom-gosto, só pode
resultar num produto anêmico e, a mais vulgar afirmação, resultar num efeito
estimulante para os esnobes”.
Robert Fawcett - "Sherlock Holmes"
A investida do esnobismo contra os artistas
figurativos do século vinte confundiu o público, pois os estetas venenosos
negaram que ilustradores pudessem produzir autênticas obras-primas. Porém,
multidões de pintores contemporâneos, totalmente destituídos de técnica, são
usados pela mídia maliciosa para se ocupar, ingenuamente manipulados, da
produção de toneladas de puro lixo estético e amparados pelos famosos discursos
para convencer os amantes da arte. Mas esse público cansou de ser embromado.
Jamie Wyeth, pintor excepcional (neto do
magistral Newell Convers Wyeth e filho de Andrew Wyeth), reagiu aos comentários
maldosos da crítica ao seu approach
clássico, declarando que permanece orgulhoso da sua herança técnica na pintura
e recompensado com o ressurgimento da arte representativa nos últimos anos.
Disse mais: “Considero um elogio ser chamado de ilustrador. Alguns dos maiores
pintores do mundo foram ilustradores, Degas, Rembrandt... Se você se motivar
por uma história, ou por alguém que você conhece, acho que no fundo tudo é a
mesma motivação. Por que isso é visto de forma tão diferente?”. Seu pai,
Andrew, já sofrera perseguições da mídia perversa por causa da magnífica série Helga. Uma foto sua foi publicada na
capa de uma grande revista com a chamada: “Andrew Wyeth, gênio ou ilustrador?”.
Só que essa revista teve a merecida recompensa com o repúdio e a resposta
inconformada do povo americano.
Newell Convers Whyeth
Newell Convers Whyeth
Quase toda a pintura a partir do século
vinte é em torno da arte sobre a arte. O que sobrou da estética que a crítica
parda produziu, a invenção da arte sobre a arte, simplesmente é a herança do
caos em que nos encontramos hoje: uma gigantesca alternativa falsa! Foi por
isso que descartei as teorias abstratas e confusas da arte sobre a arte, porque
descobri sem esforço que as grandes obras do passado, antes de tudo, são obras de
arte sobre a vida... Daí minha filosofia ser baseada na coisa vista, pois sou
mais um lógico do que um romântico. Por isso, rejeito a “profundidade” dos
modismos.
Como resultado de uma grande ensaboada
cerebral, somos ensinados a adorar os excêntricos ícones modernos sob pena de
excomunhão intelectual. Curioso, mas ninguém nos ensinou a amar Michelangelo,
Rubens, Rembrandt, Monet, Dostoievski, Proust, Bach, Mozart ou Chopin. Não é
necessário, pois isso acontece de maneira natural. Assim, rejeito firmemente o
dogma da novidade como a única virtude da arte, pois essa é a razão da falsa
alternativa postulada pela pintura sem domínio técnico, a síndrome dos
experimentalistas da retórica falaciosa. A embromação é adotada como instrumento
de trabalho daqueles que primeiro enganam a si mesmos com todo pudor para,
depois, enganarem o público despudoradamente. São os que afirmam com desdém que
as uvas estão verdes justamente por não terem como alcançá-las...
Os nomes emblemáticos dos que representam a arte sobre a arte, com os
seus “descobrimentos” característicos, tornaram-se tão intocáveis como as
paredes sacrossantas das catedrais. Criticá-los é como criticar os próprios
cânones sagrados dentro da sede papal. Por isso, milhões e milhões de pessoas
que têm aversão ao modernismo permanecem silentes pelo medo de arriscar um
ponto de vista contrário, de parecerem ignorantes, enfim, da ameaça de excomunhão
intelectual proposta pelo tribunal da inquisição da banalidade estética. Então,
vivem sob o signo do medo.
Hoje, um público melhor informado já demonstra o poder que tem para
reconhecer a beleza, a poesia e o verdadeiro significado da liberdade do
retorno ao figurativo. Tudo isso pelo ressurgimento em larga escala da pintura
figurativa, representativa, em todos os países do primeiro mundo: o realismo
contemporâneo. Um novo renascimento, resultado da criação de inúmeras academias
de arte clássica na Itália, França, Inglaterra, Rússia e Estados Unidos, no
final do século vinte, aperfeiçoando os novos mestres do nosso tempo. O público
já perdeu o medo de gostar do que é bom.
Falando um pouco mais de arte sem técnica,
certa vez conheci um artista que era consciente da sua embromação estética. Não
era honesto consigo mesmo a ponto de estudar pintura com seriedade, afinco e
método. Mas dizia: “quem não consegue fazer uma linha com significado e
expressão, não é um verdadeiro artista”. Ele não conseguia isso, mas era
considerado um grande pintor pela mídia, pois seus quadros podiam ser vistos de
qualquer lado, até de cabeça para baixo, sempre significando a mesma coisa.
Quanto a mim, sou apenas um artista tradicional, pois meus trabalhos só podem
ser vistos através de um mesmo ângulo...
Durante toda a vida, tentei conciliar forma e conteúdo para
alcançar a síntese do realismo contemporâneo do século vinte. Nesse realismo, que
no meu caso particular devido ao compromisso com os temas de época chamei de “realismo
imaginativo”, sem a novidade esperada pelos modismos, está o resultado dos
princípios promulgados pela velha escola, onde existe a preocupação do saber
fazer realista, único meio de se dominar a construção da figura humana – the contrived picture. É uma tentativa
de resgate dos valores clássicos contra a trivialidade das falsas conquistas dos
que buscam impor modismos no lugar da verdade. Daqueles que fogem do difícil estudo
da natureza, misturando-se à maioria dos que pensam a mesma coisa, mas que, na
realidade, jamais chegam a pensar coisa alguma.
Bem, minha escolha é fazer o que sinto com
prazer e alegria, tentando ser feliz com isso. Dando o testemunho da minha
presença no mundo, através de uma visão estética sólida e da compreensão de que
arte é honestidade acima de tudo. Se esta escolha não é um meio seguro, um
navio no porto está seguro, mas não é para isso que os navios são construídos.
Alguns óleos de minha autoria dos anos 90
Série de cartões de temas históricos para a Telemar
publicados em 2001