quarta-feira, 23 de setembro de 2015

E AS LENDAS FICARAM...

    No fio condutor de mudança das coisas, no devir do processo que atravessou o design no final do século vinte e início do nosso, nada representou uma falsa alternativa tão grande quanto a cultura do esvaziamento da arte na essência do próprio design. O mundo do grafismo perdeu a capacidade de continuar arte. Chega a ser vexatório, anacrônico, fundamentar e associar a arte aos critérios atuais do design, que parece, com os discursos decorados, pertencer à física quântica... Tudo em nome das “soluções” e isto era coisa já acontecida, profissão de fé, quando dei o passo do mundo da publicidade para o editorial.  Os coleguinhas que chegavam ao mercado perderam o jeito com o lápis. Pensavam que era instrumento de carpinteiro. Schöeller, o que é isso? Guache, ecoline, aquarela, tudo coisa das Belas Artes hoje em dia... E a prancheta? Coisa de ancião. O que vale é a luminescência da tela com a sua velocidade, os milhares de soluções, até os clientes perderem a capacidade de escolha e, em parceria, assumirem a criação.
    Deus ainda não morrera e, sim, o diretor de arte. Agora é o criativo. Corre paralelo o designer, com o salto mais alto e as soluções do Tio Gepeto. Narizes ficaram bem mais empinados em cima do processo do design... Mas, quando abrimos os Graphis dos anos 60, 70 e 80, percebemos alguma coisa que nos ensinaram errado de uns tempos para cá. Seria a falta do lápis? Do papel? Do cheiro de um vidrinho de guache Talens? Ou da arte mesmo? Mas fenômeno assim só aqui no Brasil, pois lá fora ainda existem os que desenham, fazem a ponta no lápis e também usam a tela de cristal líquido, e nem por isso engolem raios catódicos de manhã à noite. Desprezam a cultura do "só PC".
    Não que arte deixe de ser alcançável através dos meios eletrônicos, mas fica mais próximo do tudo igual. Meios eletrônicos são veículos, procedimentos. Portanto, servem-nos de ferramenta, porém fria. De resultado frio – de metal. Não tem a madeira, o carvão, que suja os dedos, a ponta que determina a individualidade. A ideia vem antes da palavra, do traço e o pensamento puro nasce em um cérebro que parece artesanal.
    Mas a discussão não é o procedimento e, sim, aonde chegamos. A discussão não está no uso de energia elétrica para produzir formas e cores, ou no papel de trapos de linho em que desliza um pincel de aquarela. A questão é: por que os anuários de ilustração e design, até meados dos anos 80, mostravam coisas que prendiam a nossa respiração? Porque a caneta digital fica cada vez mais pesada com o tempo. Fica superada, logo, lenta e chata, enquanto o lápis se torna cada vez mais leve quando se acredita nele. Não envelhece.
    Em seguida, exponho alguns trabalhos que foram idealizados com um complexo instrumento de corpo de madeira e alma de grafite, mais conhecido como lápis. Em uma época que a criação dava um banho de inteligência e sensibilidade. Esses designers e ilustradores foram algumas lendas que ficaram... Foram artistas de verdade.

    
    O grande John Alcorn, que participou do Push Pin Studios, chega à sublimação gráfica em uma capa de livro. O autor, ninguém mais do que Carl Gustav Jung. O título: Homem moderno à procura de uma alma. A figura dá as costas e se afasta da árvore do Paraíso. O fruto deixado para trás, a árvore ressecada, morta. Um tipo de espiritualidade que já não convence mais. Então o homem, com sua sombra projetada, invertida, ainda tentando voltar aos valores idos, segue adiante, em busca de um significado mais atual... Ora, sabe-se que a grande diferença de Freud para Jung era a questão da espiritualidade. Enquanto Freud se manteve agarrado aos valores da ciência, Jung perseguiu os significados da transcendência durante a vida. A interpretação de Alcorn supera em muito o lugar comum do design editorial hoje.

As sutilezas visuais de Milton Glaser...

Poster de Glaser que se tornou antológico

Brian Sanders - um guache na velha prancheta...

Sanders e o domínio da linha

Um layout a guache de Joe Bowler

Depois a arte final, também a guache


Ainda no guache e usando foto, Bowler não perde a soltura...

Charlie Allen explora o movimento num guache tonal

Guache de Allen no estilo story board

Allen com foco na linha

Aguada de Ed Vebell para Seleções do Reader's Digest

O guache magistral de John Berkey

A soltura do guache de Joe de Mers...

Joe De Mers e a facilidade no guache...

De Mers mais um guache

De Mers

De Mers

De Mers brinca com o guache...

Noel Sickles e o magnífico traço

Auto-retrato do grande Frank Frazetta

Óleo de Frazetta...

Frazetta

O "Reino das Sombras" de Frazetta

A leveza do óleo de John La Gatta

O óleo mais pesado de James Avati...

Avati

Avati...

E, para terminar, porque acho que falei um pouco do que queria sobre a importância do lápis, uma sutil composição a guache de Coby Whitmore...







    

quarta-feira, 25 de março de 2015

MEU MESTRE

Avançava o ano de 71. Meu segundo emprego importante no mundo da publicidade. Começava bem, pois era a segunda mais importante agência de publicidade do Brasil em força criativa. Naquela época, o glamour era abusado. Todo publicitário defendia a sua casta como se fosse um cálice de cristal. Trabalhar na criação era estar no topo do mundo. Até os profissionais de outras áreas da propaganda pegavam carona no viés da élégance.
Tudo era motivo para “tirar onda”. O pessoal dos criativos nem se fala, sobre a porta da sala de criação tinha uma faixa tosca escrita: “silêncio, gênios trabalhando”... Bacana mesmo era quando, nos momentos máximos de dejeção criativa, a sala ficava opacificada por um cinza denso, pesado de tanta fumaça, marijuana aos borbotões... Essa palhaçada comportamental há muito escorreu pelo ralo. Mas no meu tempo, a gente chegava a acreditar que fosse algo etéreo, em vias de flutuar sobre os outros mortais. Idiotas.
Nesse clima doido, que precisava ser mantido sob pena de exclusão criativa, prosseguíamos acreditando na festa. Era de uma megamultiplicidade indestrutível, pois contaminava o mundo todo. Uma agência brasileira tinha que copiar as idiossincrasias das agências londrinas, senão já era. Perdia os clientes, que também fingiam acreditar nessas baboseiras. Engraçado, os publicitários mantinham os seus empregos pelo ethos que exibiam. Quer nas roupas, nas botas francesas que usavam, nos carros, vinhos que tomavam, filmes de Godard, livros de esquerda, peças de teatro esbrúnculas, enfim, um way-of-life pesadíssimo de aguentar. Fumavam seus baseados, ficavam onomatopaicos e chatos. Depois, faziam criação. Óbvio que não eram todos, como eu, que muitas vezes fui condenado por caretice, ficando a minha criação sem os vapores de praxe. Hoje, ninguém fuma mais antes de criar, mas a porcaria das ideias, com exceções, continua a mesma. Agora, a “chupação” dessas mesmas ideias dos anuários de arte manteve o seu uso atualizado e continuidade em profusão.
Comecei a desconfiar dessa enxurrada de ações estereotipadas. Mostravam-me sempre os mesmos ilustradores e designers nos mesmos anuários de arte. Picasso morreu pouco depois, em 73. Era só Picasso. Em nome do Pablo, do Filho e do Espírito Santo... Os ilustradores eram os da moda, sempre os mesmos. A mesma coisa que faziam no cenário internacional das artes plásticas do século vinte. Fechou a cota e cala a boca – não cabe mais ninguém. Mas, mesmo com essas mazelas, o cenário era bem melhor, fazia a gente feliz. Isto sem falar nos gordos salários que ganhávamos...
Aquela época continuava a passar e eu com ela. Numa tarde chata, fazendo algo meio insípido numa prancheta do estúdio da agência, notei a chegada de um homem magro, com atitude completa de londrino, até com seus bigodes enroscados para cima. Trazia um portfolio preto, que mal sabia eu do seu conteúdo – um tesouro de arte. Seu nome: Ivan Wasth Rodrigues. O maior ilustrador histórico do nosso país. Por que não dizer, o maior desenhista clássico brasileiro? Tanto é que recebeu o título de O último dos acadêmicos do Brasil. Seu tio fora o famoso pintor histórico de Dom Pedro II, José Wasth Rodrigues.
Ali, aconteceu uma entrevista informal. Estava lá um diretor de arte, que solicitara um exame no portifólio de Ivan. Com humildade fora do comum, o entrevistado começou a mostrar seus trabalhos. Tudo parou. Até o ar. Começou a juntar gente em torno do mestre, inclusive eu. A agência parou de funcionar. O centro era a obra do visitante. As estrelas criativas ficaram em desconcerto, escondiam a vergonha, pois descobriram que de artista não tinham nada... Eram apenas coadjuvantes de paraquedistas. Foi inesquecível. Finda a entrevista, por súplica, o mestre dirigiu-se à minha prancheta e mostrou-me os seus desenhos. Predominavam as aquarelas. São Tiépolo! Toda a sua obra era exclusivamente de memória. Não usava referências de nenhum tipo, salve alguns apontamentos da natureza... Desenhava qualquer coisa. Pedi, então, que desenhasse um cavalo saltando sobre uns soldados entrincheirados. Assim foi, desenhou tudo rapidamente. Mas aí vem o detalhe: toda a anatomia dos soldados e a do cavalo, em funcionamento natural, de acordo com o esforço exigido do salto do animal com o respectivo cavaleiro... Isto sem falar no abuso de recursos fisionômicos, compositivos, tonais, uniformes militares em perfeita fidelidade historiográfica, a paisagem circundante, enfim, não quero mais descrever nada. Só vendo para crer. Aquilo era o que eu queria fazer na minha vida e ponto.
Pouco tempo depois, comecei a frequentar a casa de Ivan Rodrigues. Duvido que os publicitários daquele período tivessem a minha sorte. Ivan me apresentou a uma velha senhora: a Old-school... Foram trinta e cinco anos de convívio e muitos anos de aprendizado. Jamais conheci alguém de caráter tão elevado e, de tão nobre, não conseguiu olhar para si mesmo no sentido da autopromoção. Nunca vi Ivan lutar para promover o seu trabalho. Sua humildade e respeito pela verdadeira arte chegava a situações comoventes. Apenas quero citar uma delas. No seu aniversário, comprei-lhe um presente, um estojo de tinta a óleo Le Franc. Após os agradecimentos, Ivan se expressou comigo sem malícia e de forma muito simples: “Ronaldo, agradeço muito, mas não sei como usar isso. Preciso dominar melhor a aquarela, para me aventurar depois com coisas mais importantes... Mas muito grato, pois vou iniciar aos poucos os meus estudos com o óleo”...
Em seguida, fiz a postagem de alguns desenhos do grande Ivan Wasth Rodrigues, a quem considero um dos nossos maiores mestres do desenho como, também, um dos nossos mais injustiçados artistas.
   
Ivan Wasth Rodrigues