MEU MESTRE
Avançava
o ano de 71. Meu segundo emprego importante no mundo da publicidade. Começava
bem, pois era a segunda mais importante agência de publicidade do Brasil em força
criativa. Naquela época, o glamour
era abusado. Todo publicitário defendia a sua casta como se fosse um cálice de
cristal. Trabalhar na criação era estar no topo do mundo. Até os profissionais
de outras áreas da propaganda pegavam carona no viés da élégance.
Tudo
era motivo para “tirar onda”. O pessoal dos criativos nem se fala, sobre a
porta da sala de criação tinha uma faixa tosca escrita: “silêncio, gênios
trabalhando”... Bacana mesmo era quando, nos momentos máximos de dejeção criativa,
a sala ficava opacificada por um cinza denso, pesado de tanta fumaça, marijuana aos borbotões... Essa
palhaçada comportamental há muito escorreu pelo ralo. Mas no meu tempo, a gente
chegava a acreditar que fosse algo etéreo, em vias de flutuar sobre os outros
mortais. Idiotas.
Nesse
clima doido, que precisava ser mantido sob pena de exclusão criativa, prosseguíamos
acreditando na festa. Era de uma megamultiplicidade indestrutível, pois
contaminava o mundo todo. Uma agência brasileira tinha que copiar as
idiossincrasias das agências londrinas, senão já era. Perdia os clientes, que
também fingiam acreditar nessas baboseiras. Engraçado, os publicitários
mantinham os seus empregos pelo ethos
que exibiam. Quer nas roupas, nas botas francesas que usavam, nos carros,
vinhos que tomavam, filmes de Godard, livros de esquerda, peças de teatro
esbrúnculas, enfim, um way-of-life
pesadíssimo de aguentar. Fumavam seus baseados, ficavam onomatopaicos e chatos.
Depois, faziam criação. Óbvio que não eram todos, como eu, que muitas vezes fui
condenado por caretice, ficando a minha criação sem os vapores de praxe. Hoje,
ninguém fuma mais antes de criar, mas a porcaria das ideias, com exceções,
continua a mesma. Agora, a “chupação” dessas mesmas ideias dos anuários de arte
manteve o seu uso atualizado e continuidade em profusão.
Comecei
a desconfiar dessa enxurrada de ações estereotipadas. Mostravam-me sempre os
mesmos ilustradores e designers nos
mesmos anuários de arte. Picasso morreu pouco depois, em 73. Era só Picasso. Em nome do
Pablo, do Filho e do Espírito Santo... Os ilustradores eram os da moda, sempre
os mesmos. A mesma coisa que faziam no cenário internacional das artes
plásticas do século vinte. Fechou a cota e cala a boca – não cabe mais ninguém.
Mas, mesmo com essas mazelas, o cenário era bem melhor, fazia a gente feliz.
Isto sem falar nos gordos salários que ganhávamos...
Aquela época continuava a passar e eu com ela. Numa tarde chata, fazendo algo meio
insípido numa prancheta do estúdio da agência, notei a chegada de um homem
magro, com atitude completa de londrino, até com seus bigodes enroscados para
cima. Trazia um portfolio preto, que
mal sabia eu do seu conteúdo – um tesouro de arte. Seu nome: Ivan Wasth
Rodrigues. O maior ilustrador histórico do nosso país. Por que não dizer, o
maior desenhista clássico brasileiro? Tanto é que recebeu o título de O último dos acadêmicos do Brasil. Seu
tio fora o famoso pintor histórico de Dom Pedro II, José Wasth Rodrigues.
Ali,
aconteceu uma entrevista informal. Estava lá um diretor de arte, que solicitara
um exame no portifólio de Ivan. Com humildade fora do comum, o entrevistado
começou a mostrar seus trabalhos. Tudo parou. Até o ar. Começou a juntar gente
em torno do mestre, inclusive eu. A agência parou de funcionar. O centro era a
obra do visitante. As estrelas criativas ficaram em desconcerto, escondiam a
vergonha, pois descobriram que de artista não tinham nada... Eram apenas coadjuvantes
de paraquedistas. Foi inesquecível. Finda a entrevista, por súplica, o
mestre dirigiu-se à minha prancheta e mostrou-me os seus desenhos. Predominavam
as aquarelas. São Tiépolo! Toda a sua obra era exclusivamente de memória. Não
usava referências de nenhum tipo, salve alguns apontamentos da natureza...
Desenhava qualquer coisa. Pedi, então, que desenhasse um cavalo saltando sobre
uns soldados entrincheirados. Assim foi, desenhou tudo rapidamente. Mas aí vem
o detalhe: toda a anatomia dos soldados e a do cavalo, em funcionamento natural, de acordo com o esforço exigido do salto do animal com o respectivo
cavaleiro... Isto sem falar no abuso de recursos fisionômicos, compositivos,
tonais, uniformes militares em perfeita fidelidade historiográfica, a paisagem
circundante, enfim, não quero mais descrever nada. Só vendo para crer. Aquilo era
o que eu queria fazer na minha vida e ponto.
Pouco
tempo depois, comecei a frequentar a casa de Ivan Rodrigues. Duvido que os
publicitários daquele período tivessem a minha sorte. Ivan me apresentou a uma
velha senhora: a Old-school... Foram
trinta e cinco anos de convívio e muitos anos de aprendizado. Jamais conheci
alguém de caráter tão elevado e, de tão nobre, não conseguiu olhar para si
mesmo no sentido da autopromoção. Nunca vi Ivan lutar para promover o seu
trabalho. Sua humildade e respeito pela verdadeira arte chegava a situações
comoventes. Apenas quero citar uma delas. No seu aniversário, comprei-lhe um
presente, um estojo de tinta a óleo Le
Franc. Após os agradecimentos, Ivan se expressou comigo sem malícia e de
forma muito simples: “Ronaldo, agradeço muito, mas não sei como usar isso.
Preciso dominar melhor a aquarela, para me aventurar depois com coisas mais
importantes... Mas muito grato, pois vou iniciar aos poucos os meus estudos com
o óleo”...
Em
seguida, fiz a postagem de alguns desenhos do grande Ivan Wasth Rodrigues, a
quem considero um dos nossos maiores mestres do desenho como, também, um dos nossos mais
injustiçados artistas.
Ivan Wasth Rodrigues