quarta-feira, 25 de março de 2015

MEU MESTRE

Avançava o ano de 71. Meu segundo emprego importante no mundo da publicidade. Começava bem, pois era a segunda mais importante agência de publicidade do Brasil em força criativa. Naquela época, o glamour era abusado. Todo publicitário defendia a sua casta como se fosse um cálice de cristal. Trabalhar na criação era estar no topo do mundo. Até os profissionais de outras áreas da propaganda pegavam carona no viés da élégance.
Tudo era motivo para “tirar onda”. O pessoal dos criativos nem se fala, sobre a porta da sala de criação tinha uma faixa tosca escrita: “silêncio, gênios trabalhando”... Bacana mesmo era quando, nos momentos máximos de dejeção criativa, a sala ficava opacificada por um cinza denso, pesado de tanta fumaça, marijuana aos borbotões... Essa palhaçada comportamental há muito escorreu pelo ralo. Mas no meu tempo, a gente chegava a acreditar que fosse algo etéreo, em vias de flutuar sobre os outros mortais. Idiotas.
Nesse clima doido, que precisava ser mantido sob pena de exclusão criativa, prosseguíamos acreditando na festa. Era de uma megamultiplicidade indestrutível, pois contaminava o mundo todo. Uma agência brasileira tinha que copiar as idiossincrasias das agências londrinas, senão já era. Perdia os clientes, que também fingiam acreditar nessas baboseiras. Engraçado, os publicitários mantinham os seus empregos pelo ethos que exibiam. Quer nas roupas, nas botas francesas que usavam, nos carros, vinhos que tomavam, filmes de Godard, livros de esquerda, peças de teatro esbrúnculas, enfim, um way-of-life pesadíssimo de aguentar. Fumavam seus baseados, ficavam onomatopaicos e chatos. Depois, faziam criação. Óbvio que não eram todos, como eu, que muitas vezes fui condenado por caretice, ficando a minha criação sem os vapores de praxe. Hoje, ninguém fuma mais antes de criar, mas a porcaria das ideias, com exceções, continua a mesma. Agora, a “chupação” dessas mesmas ideias dos anuários de arte manteve o seu uso atualizado e continuidade em profusão.
Comecei a desconfiar dessa enxurrada de ações estereotipadas. Mostravam-me sempre os mesmos ilustradores e designers nos mesmos anuários de arte. Picasso morreu pouco depois, em 73. Era só Picasso. Em nome do Pablo, do Filho e do Espírito Santo... Os ilustradores eram os da moda, sempre os mesmos. A mesma coisa que faziam no cenário internacional das artes plásticas do século vinte. Fechou a cota e cala a boca – não cabe mais ninguém. Mas, mesmo com essas mazelas, o cenário era bem melhor, fazia a gente feliz. Isto sem falar nos gordos salários que ganhávamos...
Aquela época continuava a passar e eu com ela. Numa tarde chata, fazendo algo meio insípido numa prancheta do estúdio da agência, notei a chegada de um homem magro, com atitude completa de londrino, até com seus bigodes enroscados para cima. Trazia um portfolio preto, que mal sabia eu do seu conteúdo – um tesouro de arte. Seu nome: Ivan Wasth Rodrigues. O maior ilustrador histórico do nosso país. Por que não dizer, o maior desenhista clássico brasileiro? Tanto é que recebeu o título de O último dos acadêmicos do Brasil. Seu tio fora o famoso pintor histórico de Dom Pedro II, José Wasth Rodrigues.
Ali, aconteceu uma entrevista informal. Estava lá um diretor de arte, que solicitara um exame no portifólio de Ivan. Com humildade fora do comum, o entrevistado começou a mostrar seus trabalhos. Tudo parou. Até o ar. Começou a juntar gente em torno do mestre, inclusive eu. A agência parou de funcionar. O centro era a obra do visitante. As estrelas criativas ficaram em desconcerto, escondiam a vergonha, pois descobriram que de artista não tinham nada... Eram apenas coadjuvantes de paraquedistas. Foi inesquecível. Finda a entrevista, por súplica, o mestre dirigiu-se à minha prancheta e mostrou-me os seus desenhos. Predominavam as aquarelas. São Tiépolo! Toda a sua obra era exclusivamente de memória. Não usava referências de nenhum tipo, salve alguns apontamentos da natureza... Desenhava qualquer coisa. Pedi, então, que desenhasse um cavalo saltando sobre uns soldados entrincheirados. Assim foi, desenhou tudo rapidamente. Mas aí vem o detalhe: toda a anatomia dos soldados e a do cavalo, em funcionamento natural, de acordo com o esforço exigido do salto do animal com o respectivo cavaleiro... Isto sem falar no abuso de recursos fisionômicos, compositivos, tonais, uniformes militares em perfeita fidelidade historiográfica, a paisagem circundante, enfim, não quero mais descrever nada. Só vendo para crer. Aquilo era o que eu queria fazer na minha vida e ponto.
Pouco tempo depois, comecei a frequentar a casa de Ivan Rodrigues. Duvido que os publicitários daquele período tivessem a minha sorte. Ivan me apresentou a uma velha senhora: a Old-school... Foram trinta e cinco anos de convívio e muitos anos de aprendizado. Jamais conheci alguém de caráter tão elevado e, de tão nobre, não conseguiu olhar para si mesmo no sentido da autopromoção. Nunca vi Ivan lutar para promover o seu trabalho. Sua humildade e respeito pela verdadeira arte chegava a situações comoventes. Apenas quero citar uma delas. No seu aniversário, comprei-lhe um presente, um estojo de tinta a óleo Le Franc. Após os agradecimentos, Ivan se expressou comigo sem malícia e de forma muito simples: “Ronaldo, agradeço muito, mas não sei como usar isso. Preciso dominar melhor a aquarela, para me aventurar depois com coisas mais importantes... Mas muito grato, pois vou iniciar aos poucos os meus estudos com o óleo”...
Em seguida, fiz a postagem de alguns desenhos do grande Ivan Wasth Rodrigues, a quem considero um dos nossos maiores mestres do desenho como, também, um dos nossos mais injustiçados artistas.
   
Ivan Wasth Rodrigues














































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